Mutantes, Racistas e Gays! – Como os X-Men Vem Lidando Com o Preconceito

Antes de serem apenas mais um grupo de super heróis, as histórias dos X-men sempre foram carregadas de um teor crítico sobre preconceito e discriminação. A própria figura do professor Xavier e de Magneto é uma alegoria à Martin Luther King e Malcom X, ícones da luta racial nos EUA. Em suas primeiras aventuras os personagens estavam sempre em conflito com dilemas étnicos, mostrando como os jovens do Instituto Xavier Para Jovens Super Dotados lidavam com essa pressão no seu dia a dia.

O preconceito sempre em debate

Durante a fase em que foi escrito por Chris Claremont, os X-Men sofreram uma abordagem diferente. O debate racial também deu espaço para o relacionamento interpessoal entre os personagens. O sempre conturbado namoro de Jean e um Ciclope dividido com a responsabilidade de liderar a equipe; a entrada de Kitty Pride, uma pré-adolescente cheia de dúvidas e receios; um Wolverine que tentava se encaixar socialmente entre outros mutantes mais jovens; Ororo Munroe, a Tempestade, que além de mutante levantava a bandeira de uma negra africana na equipe.

Alguns leitores consideram essa fase dos anos 80 como uma espécie de “novelona mexicana” mutante. O que não quer dizer que seja ruim, de maneira alguma – apenas foi um período onde foram levantadas outras discussões além do conflito mutantes x humanos. Parte disso é reflexo das próprias mudanças na sociedade oitentista, e também ao estilo hiper textual de Claremont, conhecido por inflar de textos e diálogos os balões de seus quadrinhos.

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No começo dos anos 2000 Grant Morrison voltou a abordar temas sociais mais profundos com seus Novos X-Men. Nessa fase a equipe ganhou uma nova formação e a Mansão X voltou à sua função original: receber jovens mutantes para aprender a controlar seus poderes e assim achar seu lugar na sociedade. O relacionamento entre os personagens não foi esquecido, como a questão do “adultério psíquico” envolvendo Ciclope, Jean Grey e Emma Frost. Mas outros temas também marcaram presença, como o uso de drogas e esteróides no arco envolvendo o mutante Quentin Quire. O bullying foi outra questão bastante abordada, já que entre os estudantes existiam aqueles considerados párias mesmo entre outros mutantes, como era o caso do personagem Bico. Essa é uma fase muito boa que trouxe de volta diversos leitores que abandonaram as revistas mutantes, principalmente após a bagunça cronológica que foi os anos 90.

O boicote da Marvel e a renovação dos mutantes

Mesmo com histórias tão fortes e de grande apelo a Marvel não poupou os X-Men de seu boicote de franquias. Como muitos sabem, algumas franquias da editora como o Quarteto Fantástico, Homem-Aranha e os próprios X-Men (assim como todo universo mutante) são de direitos de outras empresas que não a Marvel Studios para uso de fins cinematográficos. E para acirrar a disputa comercial nos cinemas a editora resolveu sacrificar seus quadrinhos.

Foram tomadas diversas ações visando minar a imagem dessas franquias. O Homem-Aranha Ultimate ganhou muito mais notoriedade do que sua versão tradicional. O Quarteto Fantástico teve sua revista cancela após décadas de publicações. E os X-Men foram retirados de praticamente todas as grandes sagas e séries envolvendo o universo Marvel nos quadrinhos, muitas das vezes ausentes ou com participações no mínimo mornas.

Para aqueles que acham que isso pode ser algum exagero envolvendo teorias da conspiração vale lembrar que a Marvel excluiu os membros do Quarteto e dos X-Men das suas artes comemorativas de 75 anos, em prol de personagens como os Guardiões da Galáxia e o Homem Formiga, por exemplo, que nunca tiveram grande representatividade nas HQs mas que foram bem aceitos no cinema.

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Outra atitude que deixou os fãs incrédulos foi o boato de quê os desenhistas à trabalho da editora estavam proibidos (de maneira informal) de aceitar comissions e pedidos relacionados a estes personagens que não faziam parte do catalogo do Marvel Studios – se é que podemos chamar isso de boato, já que diversos artistas manifestaram repúdio a esse tipo de ação. Quem quiser pode conferir a entrevista que fizemos com o desenhista brasileiro Daniel HDR durante a edição 2015 do Anime Friends onde comentamos sobre esse fato.

Entretanto vale lembrar que nada disso adiantou muito para diminuir o prestígio dos mutantes junto aos fãs. Muitos leitores estão retornando aos títulos mutantes, aonde algumas mudanças significativas vem acontecendo. A primeira foi a então “morte” de Wolverine, lembrando que ninguém fica realmente morto por muito tempo nos quadrinhos, ainda mais um personagem de tamanho carisma.

Outro fato interessante foi o grande apelo gerado pelos títulos “X-Men: A Era do Apocalipse” e “X-Men: 92” lançados durante a saga Secret Wars. Tudo isso só comprova que os mutantes estão com uma força renovada após alguns anos meio esquecidos pelo público leitor de quadrinhos.

Mutantes e gays – Uma nova abordagem

E agora mais um acontecimentos retorna com o debate sobre preconceitos nas histórias mutantes. Durante a fase dos Novíssimos ocorreram algumas mudanças significativas, como a ida da equipe original para o Instituto independente formado por Ciclope. Elogiada por muitos leitores, toda essa fase escrita por Michael Brian Bendis conseguiu dar um ar de renovação nas histórias sem perder as características básicas que formam a mitologia dos X-Men.

Essa ligação do novo com o velho é bem explícita principalmente quando os X-Men do passado são trazidos ao presente para “consertar” as coisas. Já que nessa fase Ciclope acaba assumindo o papel que antes pertencia a Magneto, como líder revolucionário em prol da causa mutante. Com uma postura radical nunca antes apresentada o líder dos X-Men acaba dividindo opiniões mesmo dentro da equipe.

Falar sobre homossexualidade nas revistas mutantes não é um fato tão novo assim. Vale lembrar da polêmica que foi o casamento gay de Estrela Polar e Kyle Janadu em 2012, celebrando assim a primeira união civil homossexual da editora. A cerimônia ocorreu em Astonishing X-Men #51, com roteiros de Marjoriu Liu e artes de Mike Perkins, e serviu para jogar um pouco mais de lenha na fogueira sobre a discussão acerca dos casamentos gays nos EUA naquela época. Estrela Polar foi o primeiro personagem assumidamente gay da Marvel, o que já era para ser declarado desde 1979 na criação do personagem. Porém, as restrições editorias da época não permetiram isso.

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Mas o fato que quero abordar aqui é outro e diz respeito ao Homem de Gelo assumindo sua homossexualidade. Na verdade, na edição 40 dos Novíssimos X-Men, a jovem equipe está desfrutando uma bela tarde de sol fazendo um piquenique quando Jean confronta Bobby dizendo saber que ele é gay. Ocorre então uma das passagens mais legais desse arco mostrando como esse tipo de decisão pode ser difícil, seja você um adolescente mutante ou um humano.

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Como tudo envolvendo o tema homossexualidade, esse fato causou certa discussão na época (2012). O fato de uma HQ da Marvel mostrar um adolescente assumidamente gay foi considerado por algumas pessoas como “apologia” ou “propaganda gay”, o que não passa de uma grande besteira. A Marvel foi muito feliz ao escolher um personagem tão forte como o Homem de Gelo para levantar esse tipo de debate. Diferente da DC Comics, que fez um grande alarde ao anunciar que um de seus personagens se revelaria como sendo gay e, no final, não era ninguém de muito destaque.

Eis que nessa quarta-feira (04/11/15) é lançada a edição 600 de Uncanny X-Men onde novamente é reforçada a decisão de que Bobby Drake é realmente gay. Dessa vez não estamos falando apenas do jovem Homem de Gelo trazido no tempo, mas sim do Bobby original, que é confrontado pela sua contra parte adolescente.

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Isso significa que o personagem SEMPRE foi gay, não importa a fase de tempo, e que provavelmente ele veio escondendo isso de seus amigos a vida toda. Afinal, como ele mesmo deixa claro, ser mutante e gay em um mundo que odeia a ambos não é uma coisa fácil de aceitar.

Essa edição 600 fecha a participação de Bendis nas histórias dos X-Men, e eu não poderia ver um desfecho melhor. Depois de passar pelas mãos de grandes roteiristas como Claremont, Ed Brubacker e Grant Morrison agora temos Brian Michael Bendis mostrando que ainda é possível utilizar a equipe mutante para debater temas tão comuns e mundanos. Aliás, essa sempre foi a grande força nas histórias dos X-Men.

Quadrinhos x Cotidiano – A essência de tudo

Acima de esqueletos indestrutíveis revestidos de adamantium, de seres super fortes ou capazes de ler mentes no outro lado do planeta, longe das viagens inter galácticas, das crises temporais, das realidades apocalípticas, as histórias dos X-Men sempre trataram de preconceito, racismo, discriminação, bullying e outros fatores tão próximos dos leitores, principalmente aqueles mais jovens. É importante que as pessoas entendam que existem sim boas histórias longe dos holofotes das grandes sagas, do apelo comercial e daquilo que vemos copiado do cinema.

O nerd por natureza é um ser de enorme senso crítico. Estamos sempre clamando por conteúdos de qualidade, repudiando plágios, cópias e mensagens puramente comerciais. Mas antes de qualquer reivindicação é necessário que o próprio leitor de quadrinho amadureça e entenda que aquilo que ele tem em mãos as vezes pode ser mais do que histórias de seres fantasiados com super poderes.

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Enquanto fazia uma breve pesquisa para montar esse artigo vi diversos comentários pela rede repudiando a decisão de tornar Bobby Drake um personagem gay. Argumentos como “Tantos personagens gays para vocês usarem, deixem os outros em paz”. Ou “Estão mudando a origem do personagem, ele não é gay”. Penso que todo mundo tem direito a uma opinião, mas se você é contra esse tipo de atitude baseados nesses mesmo argumentos, talvez seja a hora de rever seus conceitos.

Quantos personagens temos na Marvel? Milhares, não? Pois cite, de cabeça, 10 personagens gays! Não consegue? Cinco então! Pois é, não é tão simples assim. Sem contar que o fato aqui não é que mudaram a origem do personagem, mas sim de mostrar alguém que por anos manteve sua opção sexual em segredo por medo de represálias, ou seja, nada diferente da realidade de muitas pessoas fora da ficção. Além disso, se você é fã de X-Men, acompanha as histórias a anos e não consegue enxergar o significado de tudo isso, então realmente você entendeu muito pouco daquilo que realmente faz parte da essência dos Filhos do Átomo.

Por fim, deixo aqui a minha recomendação para este incrível trabalho realizado por Bendis durante sua participação junto aos X-Men e a esperança de ver novas histórias, trazendo novos personagens para abordar velhas questões que, na verdade, nunca envelhecem.

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